Jornal Extra Classe: Que falta faz uma Ipanema FM Por Mauro Borba

OPINIÃO: Que falta faz uma Ipanema FM
Por Mauro Borba / Publicado em 9 de junho de 2022
Reprodução da publicação em EXTRA CLASSE


Radio Bandeirantes, 1981
Radio Bandeirantes, 1981 – Foto: Acervo Pessoal

A expressão ouvida aqui e ali, nas redes e nas ruas, retrata além de uma sau­dade. É uma espécie de lamento pelo fim e por tudo o que signifi­cou a rádio, que começou a operar em 1983 em Porto Alegre, na fre­quência 94.9, mas que começou a ser gerada ainda na Bandeirantes FM 99.3 no ano de 1980, na Rua José Bonifácio (Rua do Brique), mesma época em que surgia o bar Ocidente na Osvaldo Aranha, o Escaler no mercado da Redenção, ou seja, no Bom Fim, o bairro mar­cado por uma intensa vida cultu­ral e boêmia desde os anos 1970.

Neste cenário, surgia a rádio Bandeirantes, que depois virou Ipanema já no Morro Santo Antô­nio, no complexo da antiga Difuso­ra. A história já está contada em al­gumas publicações, como no meu livro Prezados Ouvintes – Histórias do rádio e da Pop Rock (Artes & Ofícios, 2001), a obra da Katia Su­man, Os diários secretos da rádio Ipanema FM (Besouro Box, 2019), entre outros textos acadêmicos.

A coisa toda surge em con­versas com o conterrâneo Nilton Fernando em nosso sonho juvenil de fazer uma rádio “diferente” de tudo, quando eu ainda morava em Cachoeira do Sul e ele já atuava na rede Bandeirantes em São Pau­lo. Durante todos esses (mais de 40) anos que estou envolvido com o rádio FM em Porto Alegre, ouço sempre referências à importância da Ipanema na vida das pessoas que foram jovens ou nem tanto nos anos 1980 e 1990 especialmente.


O trio que criou a Ipanema: Nilton Fernando, Mary Mezzari e Mauro Borba – Foto: Acervo Pessoal

Memórias da Ipanema

A Ipanema transformou, infor­mou, formou musical, cultural, politi­camente toda aquela geração. A for­ça do que foi a Ipanema e todo esse trabalho até hoje aparecem em de­poimentos de ouvintes a todos que integraram a equipe da rádio: “Vo­cês moldaram o meu gosto musical”, “Me deram uma consciência políti­ca”, “Foram os meus amigos através do rádio”. E isso não é pouco.

Um taxista que encontrei na saí­da do bar Ocidente, quase às seis da manhã, o sol já nascendo após mais uma festa Boys don’t cry, me conta que era ouvinte da Ipanema e, mais ainda, ouvinte da Bandeiran­tes FM, a rádio pré-Ipanema. Citou programas, entrevistas, momentos importantes das rádios. Paramos em frente ao meu prédio e seguimos conversando. Parecia um grande amigo que eu não via há muito tem­po e não nos conhecíamos.

Em uma visita ao Nilton, junto com o Reinaldo Portanova do Reli­cário do Rock Gaúcho, recebemos dele várias fitas de rolo (se o preza­do leitor não entendeu o que seja, pode conferir na internet). Ali está a gravação do dia em que entrevis­tei o Hermeto Pascoal na Ipanema FM. Ele e a banda toda saíram do estúdio tocando pelos corredores, tudo transmitido ao vivo; uma en­trevista com o Fernando Gabeira que não foi gravada, e tantas ou­tras; o abaixo-assinado, pedindo a reabertura do auditório Araújo Vianna fechado havia anos, que mobilizou a cidade inteira. En­tregamos ao então prefeito Alceu Collares as pilhas de folhas com assinaturas, e o Araújo reabriu. Fi­zemos show de reabertura e tudo.


No estúdio da Ipanema FM, Borba entrevista Ian Gillan, do Deep Purple: “os fãs subiram o morro para se encontrar com o ídolo” – Foto: Vania Rech / Divulgação

Programação diferente

Em uma fita-cassete dos meus guardados, a entrevista com o Ian Gillan, vocalista do Deep Purple, quando ele veio a Porto Alegre fa­zer um show do seu trabalho solo no Araújo Vianna. Conversamos um bom tempo num sábado à tar­de rolando músicas dos discos e ele atendendo aos fãs que subiram o morro para se encontrar com o ídolo. A gravação do comício das Diretas Já no centro da cidade, que transmitimos ao vivo durante horas e cuja gravação o mencionado Rei­naldo também conseguiu.

Que rádio faria essas coisas juntas, com conteúdos tão distin­tos e particulares e, além disso, to­cando uma programação musical diferenciada e pautada pela novi­dade, pelo som clássico e valori­zando o lado cultural das coisas?

É fácil de entender a pergun­ta, por que não surgiu outra rádio que conseguisse suprir essa falta. A falta de uma Mary Mezzari co­mentando cinema e rodando Prin­ce. A falta de um Cagê rodando John Lee Hooker, a Katia e o Talk Radio, o Barão e as “véia” do rock. O Vitor Hugo e as notícias quen­tes da manhã, o Jimi Joe e as mo­dernidades, a Nara Sarmento e o rock argentino, o Nilton e o “vamo nessa, moçada”, o Edu Santos ro­dando o Bob Marley de cada dia. É comum perguntarem se a Ipane­ma pode voltar.

Como diz a música do Sangue Sujo, banda gaúcha dos anos 1980, “Jesus Cristo vai voltar, aleluia”. Talvez surja um dia uma rádio que tenha o espírito da Ipanema. Um espírito libertário, aberto a todas as tendências musicais, posicio­nada em relação às questões am­bientais, sociais e políticas. Que apoie as diversidades musicais e as diversidades em geral. Isso não dá pra desacreditar, porque seria o mesmo que não ter espe­rança.

Olhando o cenário cultural do país e do nosso estado, isso vai ficando apenas como um sonho. Sonhar não custa nada, como diz a canção do Kevin Johansen. Por­que a Ipanema, aquela Ipanema, não voltará. “Que tempo bom, que não volta nunca mais” (Thaíde e Dj Hum). E já que estamos nas ci­tações musicais, uma de Cazuza. “O tempo não pára”. Não vamos repetir o passado, mas que a Ipa­nema faz falta, ah isso faz.

Mauro Borba é jornalista e radialista. Integrou a equipe que criou a Rádio Ipanema FM em 1983.

Fonte: JORNAL EXTRA CLASSE

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